Mr. Punch

A capa da edição nacional de Mr. Punch

Após participar de um almoço organizado pelas minhas primas para reunir membros há muito tempo não vistos juntos da família e em que minha sensação mais corriqueira foi nas-minhas lembranças-ele-era-tão-mais-alto, passei pela FNAC cheio de más intenções: ceder ao meu desejo de ler A Comédia Trágica ou A tragédia Cômica de Mr. Punch. Não sabia que a sensação do almoço me acompanharia pela leitura.

Ansioso, admirei a capa, cortei o plástico, abri e comecei a ler. Uma sequência de fotos, uma piadinha sobre morrer, agradecimentos, outra sequência de fotos e… Que diabos de dedicatória é essa?

Para Holly Gaiman, que agora está velha demais para ser jogada pela janela, e para Yolanda McKean, que está na idade ideal. (…)

Produzida em 1994, o título de Mr. Punch refere-se a uma famosa peça de teatro de fantoches europeia. Punch and Judy, segundo a Wikipédia, não têm um roteiro preciso, mas varia variam um pouco de titereiro a titereiro pelos anos, apesar de seguir uma linha básica: Mr. Punch se desentende com Judy após ser incumbido de cuidar de seu bebê e segue numa coleção de encrencas com diferentes personagens: violência, sobrenatural, mentiras, linguiças e a dúvida disso ser uma peça infantil. Terminei completamente aterrorizado, mas então lembrei-me das crianças elétricas e sem sono de minha geração sendo levadas pela Cuca enquanto seus pais não estavam.

Em volta do teatro de fantoches, o narrador fala sobre suas lembranças, de como percebia o mundo dos adultos e das apresentações de Punch and Judy assistidas, principalmente enquanto estava hospedado na casa dos avós, durante o final da gravidez de sua mãe. Neil Gaiman disse numa entrevista, mencionada pelo Omelete pouco tempo atrás, que começa a sentir o peso do tempo e o medo de talvez não conseguir fazer todas as coisas que deseja. Se a narrativa não permitisse ao autor inventar, pareceria mentira. A constante reflexão sobre a fragilidade da inocência e o saudosismo de quando tínhamos todo o tempo do mundo acompanha o papel da idade, da morte e das consequências por todas as páginas.

A narrativa de Gaiman é aquela de sempre nos quadrinhos: frases simples carregando uma história pesada. Sem golpes hesitantes como nos livros: aqui tudo é certeiro e encaixado perfeitamente nas imagens. A soma das duas linguagens surpreende principalmente numa sequência em que o rosto de um adulto é representado por uma máscara da qual nos aproximamos até vê-la por dentro e Gaiman cita um fato da peça para nos elucidar a gravidade da situação interior do personagem.

Dave McKean mostra o motivo de ser tão plagiado e o quão além está de seus imitadores. Seu traço e pintura são expressivos e sua narrativa, clara: não há dúvidas quanto aos acontecimentos, nem quebras no ritmo da narrativa. Quando a imaginação invade as memórias e os acontecimentos, as pinturas são substituídas por fotografias e colagens. McKean, pelo que lemos em Capas na Areia, deve ter comprado um computador por volta de 1993, 1994 e aqui vemos um certo deslumbre pelas facilidades da maquininha demoníaca como em textos torcidos e sombras projetadas, mas nada que os segredos de um texugo saindo de sua boca num papel amassado ou o quadro em que um garoto apaixonado por ler é substituído por uma lupa e presilhas segurando um livro não nos faça perdoar. Para satisfazer a curiosidade de designer: os títulos estão na refinada, ousada, muito plagiada e sempre associada a Sandman e Gaiman: Mason Serif-Super desenhada por Jonathan Barnbrook e lançada em 1992. Nas edições de fora, os trabalhos com essa fonte parecem ligeiramente mais variados.

O cartaz da peça Mr. Punch

Mais gente deve ter gostado da história. Ela já foi encenada, apresentada no rádio e republicada em 1995 pela Vertigo/DC e em 2006 pela Bloomsburry. O personagem principal também virou música pelo Future Bible Heroes.

O trabalho da Editora Conrad é equivalente ao de suas edições encadernadas de Sandman: excelente papel, lombada quadrada, boa impressão. Infelizmente mesmo na da Vertigo/DC há preto puro no fundo das páginas deixando aparentes as rebarbas de preto composto em torno dos quadros, como podemos ver nessa resenha encontrada no Parka Blogs. A tradução é de Ludmila Hashimoto, a heroína responsável pela versão brasileira de A Voz do Fogo. Parece-me apenas ter escapado um detalhe:

– Como estão as coisas? – Não posso me queixar. – Tem uma garota. Venha ao escritório depois, vamos fazer as contas.

Creio que deveria ser “Tem uma, garota.”; uma queixa, apesar de, ainda assim, o texto permanecer estranho. Pisada de bola da tradução? Da revisão? Não sei dizer. Das imagens de edições com texto original encontradas, nenhuma era dessa página.

Agora resta-nos aguardar pela publicação nacional de Signal to Noise e torcer para que seja no mínimo tão boa quanto.

O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada. O cravo saiu ferido e a rosa… Despedaçada?! E Mr. Punch diz “éassimquesefaz”!

*[FNAC]: Fédération nationale d’achats des cadres

Robson Sobral

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